Onde estão os pinheiros de Curitiba? Como se tornar invisível na capital? Quantos anos um curitibano leva para vencer a timidez e cumprimentar os vizinhos?
Estes assuntos tão paroquiais são temas recorrentes nas obras dos escritores curitibanos, tanto os nativos como os adotados, que seguiram à risca o conselho do eminente escritor Lev Tolstói: Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia!
Ao longo de 332 anos de existência, a cidade abrigou muitos talentos, entre eles o do mordaz crítico literário, historiador e professor curitibano Temístocles Linhares (1905-1993).
Timidez do curitibano
Observador por força do ofício, em certa oportunidade Temístocles escreveu que uma “bruma marca o caráter do curitibano”, considerado por ele um tímido, conforme registrou a Revista Paranaense de Desenvolvimento.
Seguindo este raciocínio, o crítico cita que “pode demorar anos para um curitibano cumprimentar o vizinho, mas se ele se encantar com a pessoa, é capaz até de convidar para um drinque sem indagar a filiação do convidado”, (porque ele dá muita importância à genealogia).
Mas longe de ser um detrator da sua terra natal, Temístocles tinha respostas afiadas para defender o seu torrão. Ao ser confrontado por um colega do porque o Paraná ainda não tinha dado ao Brasil um grande romancista, o crítico tascou:
“Ora, a literatura no Paraná vai bem, obrigado. Já não nos deu ela o maior contista que temos no Brasil, Dalton Trevisan? Você por acaso põe em dúvida essa constatação? Já não está ele consagrado como o contista de sua cidade, desta Curitiba, que é minha, que é sua, que é de todos os paranaenses, de todos os brasileiros e estrangeiros que ela abriga sob a sua custódia protetora e amiga?”, alfinetou.
As polacas e a bronca na igreja
E Temístocles Linhares, como sempre, tinha razão. Dalton Trevisan (1925-2024) é considerado o grande escritor curitibano e está no panteão das maiores penas do Brasil de todos os tempos. Nas suas crônicas, Em Busca da Curitiba Perdida, o autor de O Vampiro de Curitiba e a Polaquinha, escreve em tom de manifesto, segundo registrou a Revista Cândido:
“Curitiba que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul. Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça — galiii-nha-óóóvos — não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental branco discursa para a estátua do Tiradentes.”
O profícuo escritor curitibano transformava até uma bronca doméstica em seus vizinhos como ingrediente pseudo-realista da Curitiba que paira de forma onipresente em seus livros.
Para reclamar da fé empolgada e barulhenta de uma igreja próxima de sua casa, escreveu o texto Lamentações da Rua Ubaldino:
“No princípio era o silêncio na Rua Ubaldino,
eis que o número 666 da Igreja Central Irmãos Cenobitas
ergueu cartazes anunciando sinais e prodígios,
não a flauta doce e harpa eólia para louvar o Senhor,
mas a caixa de ressonância da buzina do Juízo Final
e o amplificador dos agudos desafinados de Gog e Magog,
além da mão esquerda não saber o que faz a direita
as duas juntas rompem no batuque iconoclasta do bombo
nunca tal se viu na Rua Ubaldino de hospital escola gente calada.”
Invisível em Curitiba
A irreverência também é a marca indelével do escritor Jamil Snege (1939–2003). No livro Como Tornar-se Invisível em Curitiba, ele dá um tutorial com dicas importantes para esta façanha, tais como ter talento genuíno e estudar bastante.
“Primeira condição: você precisa ter talento genuíno. Estudar bastante também ajuda, mas não substitui aquele toque de gênio inconfundível que marca e distingue certas pessoas desde o berço. Pois bem. De posse desse talento que Deus lhe deu e contra a falta de estímulo da família, do meio e particularmente da própria cidade -, você deve se atirar de corpo e alma na consecução de seu destino. Guiado unicamente pelo seu daimon, pelo seu anjo tutelar, você dará início à construção da sua lenda pessoal e dos projetos que dela advirão. Você estará, finalmente, a caminho de tornar-se invisível”, escreveu.
Cenas da adolescência
Mas não só os retratos crus e cálidos que cantam Curitiba em verso prosa. A poeta Helena Kolody (1912-2004), natural de Cruz Machado, retratava Curitiba de tempos idos com versos doces e pitorescos. No poema Curitiba, Cidade Menina ela traça um cenário da cidade na época em que era adolescente.
(...) As torres da Catedral
olhavam por cima dos sobrados.
Carroças de Santa Felicidade
trepidavam no calçamento das ruas
e faziam tremer a voz cantante
das colonas italianas:
- "Qué comprá lenha,
batata doce, repolho, óvo!"
Bondes elétricos circulavam, vagarosos,
do centro para os bairros. (...)
Curitiba não se publica
A relação com a cidade também marcou a trajetória do escritor Wilson Bueno (1949-2010), que às vezes preferia reservar para si algumas impressões.
“Minha Curitiba não se publica, antes se guarda – secreta facínora – no coração”, comentou o escritor nas páginas do livro Bolero’s Bar. Wilson nasceu em Jaguapitã e ainda criança se mudou para Curitiba, onde descobriu a sua vocação literária.
A carreira começou como articulista de jornal, quando ainda era adolescente, dividindo espaço com gigantes, como Dalton Trevisan.
“A rigor, vivo de escrever. Sou de uma família pobre, mas cedo descobri que poderia viver não da literatura propriamente dita, mas de suas extensões e desdobramentos. Com 14 anos, eu já era um articulista profissional em Curitiba. Escrevia para a Gazeta do Povo, ao lado de — olha a minha ousadia, a minha pretensão — Dalton Trevisan e dos velhinhos da Academia Paranaense de Letras. É que a Gazeta tinha uma página literária e, nela, já pontificava Dalton Trevisan, com seus 45 anos. Na época, ele já começava a se tornar um grande nome literário”, historiou.
Haikais e uma Curitiba pop
Entre os escritores nascidos em Curitiba, um dos contemporâneos mais reconhecidos no país é Paulo Leminski (1944-1989). Entre golpes de judô, poesia, publicidade, letras de músicas e muita criatividade, Leminski criou uma nova forma de escrever, usando recursos visuais inclusive para transmitir ideias e sentimentos. Um jeito rápido e instantâneo de se comunicar, isso muito antes das redes sociais de hoje em dia.
Entre as frases marcantes do escritor, que hoje dá nome a um dos principais pontos turísticos da capital, a Pedreira Paulo Leminski, estão “haja hoje para tanto ontem”, “isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”, “amar é um elo, entre o azul e o amarelo”.
Artistas como Arnaldo Antunes, Moraes Moreira e Ney Matogrosso gravaram músicas de Paulo Leminski. O escritor também era parceiro de letras da banda curitibana Blindagem.
Curitiba por adoção e inspiração
Nascido em Lages (SC), o escritor Cristovão Tezza (1952) escolheu Curitiba para viver, trabalhar, criar família e escrever os romances que o fazem ser um dos autores brasileiros contemporâneos mais lidos no país e traduzidos para outras línguas.
A cidade é palco do livro Uma Noite em Curitiba, que narra a história de um professor aposentado que se apaixona por uma atriz.
A escrita afiada, com sacadas de filosofia, e a busca por um sentido para o que todos estão fazendo no mundo, essa busca universal de toda boa literatura em todos os tempos, rendeu os prêmios Oceanos e Jaboti, com o romance “O Filho Eterno”, que também acabou sendo adaptado para o cinema, o Prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), o prêmio Portugal Telecom Bravo, Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa e Prêmio São Paulo de Literatura.
Autor profícuo, é fácil encontrar livros seus em livrarias e pela internet. Cronista, também escreveu em jornais como Gazeta do Povo de Curitiba Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo e revista Veja.
No site dele, http://www.cristovaotezza.com.br, é possível encontrar contos e crônicas que falam sobre Curitiba, como “O olhar de Curitiba”, que já nas primeiras linhas dá muitas dicas de como é a cidade.
“Em nenhum lugar do mundo o olhar do Outro será tão mortal como em Curitiba. Não ria na festa, exceto como disfarce; não chore no enterro, a menos que estejam vendo; não erga os braços, temerário assim no meio da rua”.
Curitiba de agora
A aura de Curitiba foi sendo lapidada ao longo dos 332 anos de existência e continua sempre em transformação e movimento. O frescor dos tempos recentes, não tão frescos devido às mudanças climáticas enfrentada globalmente, são retratados também pela escrita afiada de Luís Henrique Pellanda (1973).
Jornalista por formação, trabalhou nos jornais Gazeta do Povo e Primeira Hora. O livro O Macaco Ornamental (2009) ficou em segundo lugar no Prêmio Clarice Lispector 2010. Esse foi o primeiro livro publicado dele. O autor também foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura em 2012, com o livro Nós Passaremos em Branco.
Aqui segue um pouco da verve do escritor no conto “Meu último concurso de beleza”:
“Não vou dizer quando ou onde essa história começou, porque as histórias nunca começam. É como tentar lembrar o início de um sonho, impossível. Quando você vê, já está envolvido na ação, no controle de nada. E de repente, quando menos se espera, o sonho pode acabar. Feito um livro cuja trama não fecha. A gente só vai saber que foi ruim quando já for tarde demais. Tempo perdido.”
Revolução do calçadão
O cronista, cartunista, artista plástico e escritor Dante Mendonça dirigiu seu olhar para um dos temas mais emblemáticos de Curitiba.
No livro A Rua e a Bruma, a Régua e o Compasso – Romance da Revolução Urbana de Curitiba, o escritor, nascido em Nova Trento (SC), aborda a revolução urbana da cidade desencadeada a partir do fechamento da Rua XV de Novembro para o tráfego de automóveis.
Com personagens reais e imaginários, Dante conta como o calçadão resgatou a Curitiba de antes dos anos 1970, da prosa em pé no Centro da cidade, das mesas e cadeiras ao ar livre, cenário perfeito para ponto de encontro dos curitibanos.
No ver do escritor, a Rua das Flores é como o primeiro ponto da sutura da cidade diante da bruma, o divisor de águas entre a Curitiba taciturna, encolhida, e a cidade que despontou como referência em planejamento urbano para o mundo.
Amor no Bar Stuart
As intrigas passionais ou de violência, muitas delas no universo doméstico e ambientadas em Curitiba, fazem parte do tema central do jornalista e escritor Edilson Pereira. Autor de 20 livros e natural de Oriente (SP), radicado em Curitiba desde 1997, Pereira se define como um noir de Curitiba.
No livro A Dama do Bar Stuart, ele narra uma história de desilusão amorosa vivida no famoso bar, que existia até há pouco tempo no Centro da cidade.
“Romântica até o fim. Na rua, entrou no táxi que a esperava e voltou chorando para o seu apartamento perto do Bar Stuart, pois sabia que não encontraria outro exemplar daquele. Depois, frequentou o Stuart poucas vezes. Mas quando aparecia, continuava uma senhora bonita e elegante. Os olhos agora eram mais tristes.”