Em A Via Láctea, o cantor e compositor Renato Russo (1960-1996) dizia: “Quando tudo está perdido/Sempre existe um caminho.” Os versos se encaixam nos princípios dos cuidados paliativos: aumentar o conforto e a qualidade de vida a partir do momento em que não existe mais possibilidade de cura do doente.
Respeitar as decisões dos pacientes e dos familiares sobre o tratamento são abordagens que integram o modelo de cuidados paliativos na assistência à saúde. O assunto foi tema do 2º Encontro de Cuidados Paliativos, realizado no Auditório do Hospital Municipal do Idoso, na sexta-feira (28/10).
O diretor técnico do hospital, Clóvis Cechinel, destacou a importância do olhar transdisciplinar na abordagem paliativa. “Cuidados paliativos têm muita técnica, muito estudo, muita intenção e, claro, afeto”, disse.
A programação contou com a palestra online “Terapia da Dignidade: além do cuidado”, ministrada pela médica Ana Carolina Kotinda, especialista em Cuidados Paliativos. Ela citou um estudo sobre o motivo que levaram pacientes a países em que é permitida a morte assistida.
Segundo Ana Carolina, ao contrário do que se imaginava, não era a dor o principal motivo, mas a perda da dignidade (para 57% dos entrevistados). “A falta da dignidade é algo pelo que vale a pena morrer? Então eu preciso estudar isso, com muito cuidado, porque se eu vou morrer pela falta disso [indignidade], eu posso viver por isso [dignidade]”.
Comissão
Desde janeiro de 2018, o Hospital Municipal do Idoso conta com uma Comissão de Cuidados Paliativos. Para Elisângela Shiroma, médica e presidente da Comissão de Cuidados Paliativos do Hospital do Idoso, é preciso desmistificar o tema.
O tema ainda enfrenta preconceito – até mesmo por parte de profissionais de saúde, que muitas vezes encaram equivocadamente a abordagem como uma interrupção do tratamento. “Há muito o que fazer pelo paciente em cuidados paliativos”, observa a médica.
“Muitas vezes não conseguimos mais curar aquela doença que ele tem, mas conseguimos fazer muito para que viva com qualidade, com seus sintomas mais controlados e compensados”, explica Elisângela.
A médica destaca a importância de distinguir o estado clínico grave e irreversível, que precede uma morte próxima, e os cuidados paliativos. Pacientes paliativos podem viver por anos, apesar de estarem com uma doença que não tem cura.
“E mesmo para os pacientes em fim de vida, o objetivo é proporcionar que esse tempo seja vivido da melhor forma possível, evitando procedimentos desnecessários, que só trariam sofrimento e não mudariam o desfecho”, acrescenta a médica.
Suporte à família
A Comissão de Cuidados Paliativos faz uma análise da evolução da doença, o modo como o paciente responde ao tratamento e sobre a perda gradativa da funcionalidade nos últimos dias, meses ou até anos. A decisão é compartilhada e envolve parecer médico, da família e, principalmente, a vontade do paciente.
“É uma decisão partilhada: há uma conversa, análise de prognósticos, possíveis desfechos e a decisão é conjunta”, conta Elisângela. A partir daí é feita a elaboração do plano terapêutico, de controle de sintomas e de acompanhamento psicológico.
Nilze Genari, 70 anos, cuida do marido Renato Antonio Genari, 79 anos. Ele sofre com sequelas de um acidente vascular cerebral (AVC) há dez anos, quando teve a fala e os movimentos parcialmente comprometidos.
Há cinco anos, depois de uma queda que causou a fratura no fêmur, o quadro de saúde de Renato foi agravado. Ele passou a viver na cama, totalmente dependente da esposa.
Casada há 54 anos, Nilze faz questão de estar ao lado de Renato, cuidando dele e demostrando amor. No último ano, entretanto, as dores do marido vêm mexendo com o coração da esposa. “Não é cansativo cuidar dele, o que cansa é vê-lo sofrer”, desabafa Nilze.
Ela o acompanha no hospital durante o dia; à noite, os filhos se revezam. A evolução da doença não tem sido fácil para a aposentada aceitar o desfecho de tudo. Ela também precisou de atendimento da Comissão de Cuidados Paliativos.
“Eu não sei se a palavra certa é ‘aceitar’, mas está ajudando a lidar com tudo isso”, explica. “Conversei com a médica, com a psicóloga, elas me ajudaram a entender os estágios da doença, a evolução”, lembra dona Nilze.
“Eu tinha bastante medo de enfrentar esse momento. Até pedi a Deus para ir antes (dele) para não ter de passar por isso, mas agora entendi e peço a Deus força para quando chegar a hora”, revela a aposentada.
É quando as palavras de Dona Nilze fazem lembrar de outra canção da Legião Urbana, “Música Ambiente”, em que Renato Russo canta: “Se um dia fores embora/ Te amarei bem mais do que esta hora/ Me lembrarei de tudo que eu não disse/ E de quando havia tudo que existe”.